Clockwork Angels é mais uma obra que evidencia a magnificência criativa e simbólica do Rush. Tecido num universo steampunk, o 20º álbum de estúdio da banda inspirou a mente criativa do escritor Kevin J. Anderson, um devoto fã do power-trio e que tem no currículo mais de 140 livros publicados, com mais de 20 milhões de impressões, dentre eles spin-offs de Guerra nas Estrelas, Arquivo-X e StarCraft, além de várias prequels da saga Duna.
Sabendo que o tema é de grande interesse para os fãs e que exige uma análise mais aprofundada, fomos pesquisar sobre o assunto e descobrimos que uma das fãs do Portal, Janaína Santos, é mestranda em letras na Unesp em São José do Rio Preto- SP e tem como objeto de pesquisa o álbum Clockwork Angels e suas adaptações para livro e novela gráfica. Entramos em contato e pedimos se ela poderia escrever a respeito do livro exclusivamente para os fãs do Portal. Ela assim o fez com o título “Os Anjos do Tempo – Uma Aventura em Busca de Si Mesmo”.
Pois bem, minutos antes de subirmos seu artigo para o nosso site, recebemos a notícia que a revista da UFMG também publicou no mesmo dia seu artigo acadêmico intitulado “Clockwork Angels ou uma Nova Saga do Otimismo” que trata da influência de “Cândido ou o Otimismo” de Voltaire no arco narrativo do último álbum do Rush.
Sendo assim, temos no mesmo dia dois matérias riquíssimos para os fãs entenderem os detalhes dessa obra-prima.
Demais! Obrigado, obrigado e obrigado, Janaína.Clique para Artigo na Revista UFMG – Volume 24
Os anjos do tempo – uma aventura em busca de si
(Artigo Exclusivo para os fãs do Portal)
A passagem para a vida adulta traz uma série de mudanças ocasionadas muitas vezes por convenções sociais de “escolhas prontas” e um destino pré-determinado: optar por um curso de faculdade e depois arranjar um bom emprego, encontrar alguém para constituir família, ser um bom cidadão e escolher sempre fazer o bem. Ter “casa, comida e roupa lavada” é o desejo de muitos, se não for da maioria, afinal isso tudo é sinônimo de estabilidade. Mas o simples fato de desejar não seguir algum desses costumes causaria um certo grau de desaprovação de um indivíduo frente à sociedade e desconforto na família e na comunidade. Mas… Não somos livres para decidir? Não somos livres para sonhar e ir atrás de satisfação além do que foi pré-concebido?
Reflexões e questões como essas são levantadas durante a leitura de Clockwork Angels — traduzido no Brasil como Os Anjos do Tempo – de Kevin J. Anderson, lançado em inglês em setembro de 2012. O livro é uma adaptação/ampliação da história contada no álbum homônimo do Rush, lançado em abril do mesmo ano, com letras e textos introdutórios de Neil Peart e com ilustrações do artista Hugh Syme.
Na novelização, o personagem central do álbum ganha o nome de Owen Hardy: um jovem sonhador e ingênuo que queria mais da vida do que lhe havia sido literalmente programado pelo governante de Albion — o Relojoeiro — casa, carreira e família. Owen não era exatamente um rebelde, afinal havia sido criado para acreditar que vivia no melhor dos mundos possíveis onde “cada lugar tinha sua coisa e cada coisa tinha seu lugar”. Entretanto era difícil para ele “enterrar seus sonhos em um lugar bem escondido”, não desejar ver a beleza dos Anjos do Tempo em Crown City nem poder voar em um vaporeiro (aqueles veículos que podem ser vistos na ilustração da letra de “Caravan” no encarte do álbum). Owen não conseguia parar de pensar grande.
Apesar de um início simples, a trama vai se desenvolvendo como um jogo entre os extremos da ordem e do caos, do destino versus o livre-arbítrio representados pelos personagens do Relojoeiro e do Anarquista, ambos com propostas distintas para o jovem Hardy.
A história é ambientada em um mundo steampunk movido a fogo frio (sim, como o nome da música “Cold Fire” do Counterparts, 1993): paisagens coloridas, juntamente com mecanismos e engrenagens descritos de modo a criar na mente do leitor a atmosfera de Albion. As ilustrações de Hugh Syme são um show à parte tanto no álbum quanto no livro e contribuem ainda mais para uma visualização do universo em que Owen vive. Mas os personagens, as cidades, o circo, os Anjos do Tempo com sua fumaça inebriante só ganham forma ilustrada na adaptação para a novela gráfica de 2015, com texto do próprio Anderson e ilustrações de Nick Robles.
Por ser uma adaptação, o livro faz constantes referências ao álbum, ampliando o que não é possível dizer em uma canção, o que já é uma fonte de prazer para o leitor/ouvinte que dedicou um certo tempo para observar as ilustrações e as letras no encarte. Mas esse prazer não para por aí: o texto é construído também com referências a vários nomes de discos, músicas e trechos literais ou parafraseados de canções — Roll the bones, Presto, Faithless, Peaceable kingdom, Malignant narcissism, Time stand still, só para citar alguns, que fazem o fã dar aquele sorrisinho de “eu sei do que você está falando!”. Também, logo depois de uma batalha entre a Ordem e o Caos, Anderson usa um pequeno trecho parafraseado de uma música do álbum Permanent Waves para fazer Owen tomar uma importante decisão, fazendo evocar na mente do leitor um certo refrão…
É interessante notar uma curiosidade contada por Neil Peart no Posfácio do livro (que, aliás, vale a pena ser lido): ele comenta que a inspiração literária para o arco narrativo de Clockwork foi o conto satírico Cândido ou o Otimismo (1759) do filósofo e escritor Voltaire. No conto, o personagem Cândido é um jovem criado para acreditar que vivia no melhor mundo possível, mas precisa enfrentar várias situações de muito sofrimento, o que coloca suas crenças em cheque. Enquanto o filósofo questiona a máxima “tudo está bem” de uma maneira bastante ácida, Peart e Anderson utilizam a crença satirizada por Voltaire para construir a mentalidade por meio da qual o Relojoeiro governa e a razão do comportamento de certos personagens. Assim, quem já tiver lido Cândido vai poder ver claras associações com o protagonista de Clockwork Angels e o mundo em que ele vive, mas quem não tiver lido não sairá prejudicado por isso.
O fechamento da história fica, em parte, no Epílogo do livro, onde Anderson consegue impressionar com a maneira que constrói as profundas reflexões do personagem.
Por fim, Os Anjos do Tempo é uma ampliação imperdível de um álbum magistral. Com um início ingênuo, o texto cresce e se transforma em uma reflexão sobre a vida e seus valores: o jardim que se deve cultivar e proteger.
Janaína Santos é mestranda em letras na Unesp em São José do Rio Preto.