O final dos anos 70 e início dos anos 80 foi um período de mudanças significativas no cenário musical e social. O rock progressivo, que dominou grande parte da década de 70, estava dando espaço ao surgimento do punk e do new wave. Foi neste cenário de transição que o Rush lançou “Moving Pictures” em 1981, um álbum que encapsulou a essência do rock progressivo, mas também acenou para novas direções musicais.
“Tom Sawyer”, a faixa de abertura do álbum, é uma representação perfeita desse momento de transição. A música combina a complexidade musical pela qual o Rush era conhecido com uma sensibilidade mais moderna e acessível. Liricamente, a canção aborda temas de individualidade, rebeldia e desafio ao status quo, refletindo o espírito da época. O início dos anos 80 foi marcado por uma crescente desilusão com a ordem estabelecida, levando muitos a questionar e desafiar as normas sociais e políticas. “Tom Sawyer”, com sua mensagem de independência e autoafirmação, capturou perfeitamente esse zeitgeist.
A criação de “Tom Sawyer” não foi apenas influenciada pelo momento histórico, mas também pelo background filosófico da banda. Inspirando-se em autores como Ayn Rand, o Rush sempre teve uma inclinação para explorar temas de liberdade individual, autodeterminação e questionamento da autoridade. “Tom Sawyer” do consagrado escritor norte americano Mark Twain, com sua representação do icônico personagem literário como um rebelde moderno, é uma extensão natural dessa filosofia.
Origens e Inspiração
A faixa “Tom Sawyer” do álbum “Moving Pictures” é, sem dúvida, a música mais conhecida do Rush, e teve seu início como um riff de sintetizador que Geddy Lee tocava durante as passagens de som.
A letra de “Tom Sawyer” é descrita como “ligeiramente inscrutável”, sendo a primeira colaboração entre Neil Peart e o letrista do Max Webster, Pye Dubois. Este, um letrista canadense mais conhecido por sua colaboração com a banda Rush e também com a banda Max Webster. O artista é conhecido por sua abordagem única de escrita, muitas vezes enviando páginas de rabiscos e ideias que são posteriormente estruturadas e refinadas por outros;
Dubois tem uma tendência a habitar em um universo imagético e impressionista, enquanto Peart traz uma estrutura mais ordenada às letras, tornando sua colaboração uma combinação fascinante de estilos e personalidades. Pye Dubois descreveu a letra finalizada como tendo um “sentido maravilhoso e metálico do Rush”. Ele menciona que a canção fala sobre os desafios enfrentados por Tom Sawyer em sua época, comparando-os aos desafios contemporâneos enfrentados pelos jovens. Para ele, a letra é “um pouco ambígua, mas de linhadura”. Ao usar a palavra “governo” em uma música, você está fazendo uma declaração ou comentário político. Ele acredita que a letra fala por si mesma, especialmente com linhas como “O Tom Sawyer de hoje, o guerreiro de hoje”.
Percebam: há um contexto histórico, uma localização da música no embate que se caracterizava na transição da década de 70 para a década de 80. O ocidente contra o oriente, o capitalismo, contra o socialismo. E questões existenciais, como Tom Sawyer retoma, tinham sido deixados de lado.
Processo de Gravação
O processo de gravação de “Tom Sawyer” não foi fácil.
Geddy Lee, vocalista e baixista da banda, mencionou que durante a gravação, eles consideravam a música como uma das faixas mais fracas destinadas ao álbum. Neil Peart, por outro lado, teve que tocar a parte da bateria inúmeras vezes, descrevendo o processo como infinitamente detalhado. Levou um dia e meio para finalizar a gravação da música no Le Studio.
O produtor Terry Brown lembra-se do que aconteceu com “Tom Sawyer” quando a banda a apresentou na gravação. Citando-o:
“Morin Heights é um ambiente lindo e adequado para os meninos porque eles não se distraem. Eu estava conversando com outras bandas que foram para Morin Heights, e tudo o que fizeram foi festejar até não poder mais e depois fazer o disco na última semana – e soava como tal. Enquanto que com o Rush, começaríamos no primeiro dia e trabalharíamos [até o último]. ‘Tom Sawyer’ foi gravada na noite em que carregamos o equipamento. Estávamos todos animados com isso.”
Ele continua:
“Obviamente ‘Tom Sawyer’ era uma música incrível e tem um som realmente característico. Mixamos digitalmente. Sei que isso não muda o fato de que as músicas e o material desse álbum têm um certo som. Mas demos esse passo, e acho que fez uma diferença sutil na forma como as coisas soavam, na forma como a bateria soava. Finalmente senti que tinha capturado a bateria de forma otimizada.”
Seria nesse começo de misturas eletrônicas que Terry Brown começaria a se sentir desconfortável com o caminho experimental do Rush, consolidado no próximo álbum da banda, “Signals”. E que também, significa a separação da banda de seu produtor histórico.
A Bateria de Tom Sawyer
O baterista confirmou que é uma das músicas mais difíceis do Rush para ser executada corretamente do ponto de vista da bateria. O desafio não estava apenas na técnica, mas também no sentimento e nas sutilezas da música.
Para ele, não são tanto os aspectos puramente técnicos, como o padrão rápido colocado em uma estrutura aberta e um ritmo bastante lento. “É mais devido ao sentimento, sempre, as sutilezas da música. Quanto mais sofisticado se torna o seu conhecimento e gosto, mais sutis são as coisas que você está procurando.”
Impacto e Legado
“Tom Sawyer” é uma música que exemplifica uma mudança no estilo de escrita da banda. Eles tentaram escrever mais do ponto de vista do ritmo, estabelecendo um sentimento rítmico e trabalhando as mudanças musicais em torno disso.
Com o lançamento de “Moving Pictures”, a banda alcançou um novo nível de popularidade, tocando em grandes shows e recebendo mais tempo no rádio, especificamente com “Tom Sawyer” e “Limelight”.
Tornou-se uma das mais tocadas nas turnês da banda, ao lado de Spirit of Radio.
“Tom Sawyer” e a Série MacGyver no Brasil
A história da música “Tom Sawyer” do Rush e sua relação com o Brasil é fascinante e pouco conhecida por muitos.
Em nosso país tropical, essa icônica canção foi escolhida como trilha sonora da abertura da série de televisão “MacGyver”. Essa decisão inusitada não só apresentou a música a uma geração mais jovem, mas também a imortalizou na cultura pop brasileira. A sinergia entre a energia vibrante de “Tom Sawyer” e as empolgantes cenas de ação de “MacGyver” gerou uma combinação inigualável, gravando ambos – a canção e a série – no coração de inúmeros brasileiros.
Veja só a abertura original:
O reflexo desse impacto cultural foi evidente quando o Rush se apresentou em São Paulo para um público estonteante de 60.000 pessoas, o maior público que a banda já teve em um show como atração principal. A diversidade da plateia chamou a atenção, com uma presença significativa de mulheres, fato que Geddy Lee, vocalista da banda, comentou com humor, chamando-o de uma “agradável surpresa”. Além disso, os fãs brasileiros deram um toque especial às músicas instrumentais da banda, adicionando suas próprias versões cantadas.
Como resultado dessa relação única, o Brasil foi presenteado com um álbum ao vivo do Rush, um tesouro musical para chamar de seu.
Agora, a abertura nacional:
Quem diria que a decisão de um técnico da TV Globo em colocar Tom Sawyer em uma abertura de seriado causaria isso décadas depois?
O significado de Tom Sawyer
“Tom Sawyer”, do Rush, é uma ode ao individualismo e à resistência à conformidade. O personagem principal, inspirado no icônico Tom Sawyer de Mark Twain, é retratado como um guerreiro dos tempos modernos, alguém com uma postura forte e orgulhosa que valoriza sua independência mental. Ele não permite que sua mente seja influenciada ou “alugada” por outros, seja por deidades ou governos.
Esta resistência à influência externa é um reflexo da filosofia de individualismo da banda, influenciada pelas obras de Ayn Rand, sugerindo que a maneira como percebemos indivíduos como Tom Sawyer reflete nossas opiniões sobre a sociedade em geral.
A música também aborda a transitoriedade da vida, sugerindo que, embora as situações possam mudar, a mudança em si é uma constante. Em sua essência, “Tom Sawyer” é uma música rica e complexa que desafia os ouvintes a refletir sobre individualidade, mudança e a natureza de quem nos rodeia.
“Tom Sawyer” é uma testemunha do talento e da paixão do Rush. Através de colaborações frutíferas, experimentação musical e uma busca incessante pela perfeição, a banda criou uma faixa que permaneceu relevante e influente ao longo dos anos.
Seja através das batidas complexas de Neil Peart, da poderosa voz de Geddy Lee ou das guitarras de Alex Lifeson, “Tom Sawyer” é uma celebração do que o Rush representa.