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Conversa com

Candice Soldatelli – Parte 2

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Candice Soldatelli

Música Para Viagem – A Trilha Sonora da Minha Vida e do Meu Tempo – Volume 1

Música para Viagem” é mais uma linda obra escrita em 2004 por Neil Peart e lançada pelas Editora Belas Letras neste ano de 2020 com a tradução de Candice Soldatelli. 

A Candi é uma pessoa muito querida na comunidade dos Rushers (acessível também) e recebeu a árdua tarefa de traduzir a longa jornada do professor em sua BMW Z-8 conversível de Santa Mônica na Califórnia até o Parque Big Bend no Texas. 

O livro é baseado no poema “Traveling Music”, base para a música “Workin’ Them Angels”, que tem origem numa jocosidade Peartiana em “dar trabalho aos anjos da guarda ao se aventurar por aí”.

Para entender melhor como Neil Peart percebe o Mundo à sua volta em “Música para Viagem”, o Portal Rush Brasil convidou Bruna Bengozi, editora da Revista Digital Livro & Café (www.livroecafe.com) para uma entrevista em formato de bate-papo com a Candice.  Adentramos na infância do baterista do Rush, seu gosto refinado por música, sua timidez e principalmente como ele percebe o tempo à sua volta. Vai ser fácil perceber que o “tempo” é a linha condutora dessa conversa. Boa leitura! Um grande abraço a todos e a todas.

1. PORTAL RUSH BRASIL

Enquanto preparadora e revisora textual, sabemos que é preciso criar um vínculo com o original a ser trabalhado, que vai além de um contato superficial e impessoal com o texto. Na tradução, essa relação é ainda mais profunda e complexa. Como foi o seu processo de pesquisa e “mergulho” no livro “Música para viagem: volume 1” para traduzi-lo? Você buscou ouvir todas as músicas que Peart cita na obra?

CANDICE SOLDATELLI

Desde que comecei a traduzir os livros de Neil Peart, já nem mais me considero só tradutora, me tornei também pesquisadora em tempo integral. O autor faz muitas referências o tempo inteiro em seus livros, seja de história, geografia, botânica, biologia, livros de ficção e de filosofia, filmes e música. Para este livro, fui criando uma playlist no Spotify com cada artista, cada faixa que ele mencionava. Enquanto traduzia, ia escutando a trilha sonora do livro. Dentro das escolhas de Peart, tanto o que ele ouvia na infância e na adolescência – período das memórias deste volume 1 – quanto o que ele está ouvindo enquanto dirige rumo ao parque nacional Big Bend na fronteira com o México dão uma boa ideia de como ele se educou musicalmente e o que o inspirava.

2. PORTAL RUSH BRASIL

“Tufas calcárias”, “leques aluviais” e “formação de abetos” são nomenclaturas que a gente aprende pegando carona na garupa na moto do professor Neil enquanto “viajamos com ele pela estrada”.

Fale mais para gente do que podemos aprender com o “Neil mais velho” descrevendo o “Neil Guri”.

CANDICE SOLDATELLI

O Neil quando era bem pequeno foi criado numa fazenda na companhia da avó e dos pais que depois se mudaram para St. Catharines, que é bem próxima das Cataratas do Niágara. Passei por lá em 2015 e digo que parecia muito tranquila, rural até, bem como o Neil descreve no livro. Infelizmente não consegui ir a Lakeside Park, que realmente parece ter sido um lugar marcante na vida dele. Foi em St Catharines onde ele foi para a escola, arrumou seu primeiro emprego (entregador de jornal, e depois auxiliar no parquinho de Lakeside Park), fez aula de bateria, assistiu a shows das bandas locais, fez amigos, levou um tombo de moto que, por incrível que pareça, o deixou meio traumatizado, hehe.

No livro ele fala muito também sobre o que o pai dele ouvia no rádio, o que ele assistia na televisão (como um filme sobre Gene Krupa fez com que se interessasse por bateria). A formação musical do Neil começa ali, entre o fim da infância e o início da adolescência. Ele fala dos primeiros discos, dos primeiros programas de tv a que assistia, dos primeiros shows exibidos no cinema, como o T.A.M.I Show, e o lendário show do The Who em Toronto. Esse relato dele é demais: parece que estamos lá junto vendo o Keith Moon enlouquecido.

“A primeira vez que me entusiasmei com a ideia de tocar bateria foi assistindo The Gene Krupa Story na televisão”- Neil Peart em Música para Viagem.

Fonte: Gene Krupa jddrums.com/krupa.html

3. PORTAL RUSH BRASIL

Que legal, Candi! Falando assim, dá vontade de parar tudo para ler o livro. Lembro no Beyond The LIghted Stage que ele disse do quão fã ele era em sua adolescência do The Who, e mesmo assim, ele nunca teve o mínimo impulso de sair correndo atrás de um autógrafo do Keith Moon. O Neil sempre foi reservado e é realmente curioso como uma pessoa tão fechada descreve sua vida de forma tão aberta em seus livros…

CANDICE SOLDATELLI

A questão de ser reservado tinha a ver com timidez e sensação de inadequação à fama. Nunca houve segredo quanto à história dele, à sua obra, ao seu trabalho: o problema era sentir seu espaço privado invadido, havia fãs que forçavam um contato mais próximo sendo que ele nunca havia visto a pessoa na vida. Para um cara introvertido e introspectivo como Neil Peart, certamente isso parecia invasivo. Com os livros e os artigos no blog, creio que ele tentava expor um pouco mais sobre o modo de pensar dele, sua visão de mundo. O foco nos livros, ao menos, me parece este: partir de experiências pessoais para abordar temas universais.

4. PORTAL RUSH BRASIL

Exatamente, há uma entrevista do Neil Peart à revista Rolling Stone, em 2012, em que ele afirma que aprendeu em tomar uma experiência pessoal e transformá-la em universal, ou, no caso de contar uma história, partir do universal e fazê-lo pessoal.

Como você percebe em “Música para Viagem” que ele sedimenta essa ponte entre vivências pessoais, particulares e nossas próprias experiências?”


CANDICE SOLDATELLI

Acho que já se pode dizer que Neil Peart foi um dos grandes pensadores do nosso tempo. Na verdade, a experiência humana guarda muitas semelhanças de indivíduo para indivíduo neste ciclo de nascer, crescer, se descobrir, tornar-se adulto, envelhecer. A questão particular neste livro – da nostalgia e da reflexão sobre a formação dele como pessoa e como músico – não deixa de fazer com que qualquer um se identifique com isso. Nem todos nós somos músicos, mas somos todos amantes de música, e ele a usa como fio condutor de sua biografia (porque, sim, Música Para Viagem não deixa de ser uma autobiografia de Neil Peart unindo duas pontas: sua infância e adolescência, e a nova vida após superar a tragédia narrada em Ghost Rider: A Estrada da Cura). Quem nunca perdeu alguém pelo caminho? Quem nunca buscou no passado respostas para certas atitudes e visões de mundo que temos no presente? É basicamente o que Neil Peart faz em Traveling Music.

5. PORTAL RUSH BRASIL

E agora, nós fãs é que estamos lidando com essa perda pelo caminho que você citou: a perda do Neil.

Ainda é um assunto bem delicado para a gente, está muito recente e se lembrarmos o quanto ele tinha a viver e produzir, né?!.. ao longo do documentário “Time Stand Still”, por exemplo, fica no ar os planos que ele tinha de continuar a carreira como escritor após o final da R40.

Bem, em “Ghost Rider”, o sustentáculo da obra é a dor do luto, em “Música para viagem – volume 1”, então o enlace criativo do Neil são as experiências do pessoal para o universal, certo?.. como se dá essa perspectiva de tempo, de passado e presente na obra?

CANDICE SOLDATELLI

Há um trecho famosíssimo da literatura clássica universal de Marcel Proust, da obra “Em Busca do Tempo Perdido”, em que o gosto de um chá acompanhado de madeleines desperta memórias guardadas há muito tempo. O Música Para Viagem funciona assim: o que Neil ouve na estrada no presente narrativo do livro – indo para o parque nacional Big Bend – acaba fazendo com que ele recupere memórias da infância e da juventude. E não é assim com todos nós? Todos nós temos músicas e discos que, quando os escutamos, se tornam máquinas do tempo.

6. PORTAL RUSH BRASIL

Você acabou de ativar um gatilho na minha cabeça ao falar de “música” e “máquina do tempo” ao mesmo tempo, Candi. Pessoalmente, eu tenho estudado muito o epistemólogo Karl Popper, que fez análises complexas e brilhantes sobre historicismo e o mito do destino. É impressionante, como o que o Popper fala, ressoa nas músicas do Rush, como: “Time Stand Still”, “Freewill”, “Faithless” e “Workin’ them Angels”. Vou pegar uma carona no “Workin’ them Angels”que é o sustentáculo do livro “Música para Viagem – A Trilha Sonora da Minha Vida e do Meu Tempo”. Como você percebe o tempo na mente de Neil? … quero te ouvir sem pressa, rs.

CANDICE SOLDATELLI

Tânios, para responder isso eu teria que escrever uma tese de doutorado, mas lá vai: ele fala nos livros, muitas vezes e de diferentes formas, que o que importa é o caminho, a jornada e aproveitar ao máximo cada passo.. O tempo para ele talvez fosse  isso: um caminho apenas, uma estrada que seguia em frente para sempre. Agora, uma grande pista sobre este tema está no último álbum do Rush, Clockwork Angels. Presta atenção na letra de Headlong Flight que fala “Eu gostaria de viver tudo isso de novo”. Acho que sempre houve nele uma vontade de aproveitar ao máximo cada segundo porque ele sabia o quanto o tempo nos escapa o tempo todo.

Verso Um do “Música para Viagem” – Driving Away to the east, and into the past

7. PORTAL RUSH BRASIL

Isso mesmo, ele tinha esse fascínio pela vida e tem um vídeo muito bom numa entrevista do Neil que ele fala que nunca se sentiu entediado na vida:

Ainda pensando sobre tempo, memórias e afins, é possível notar nos livros do Neil Peart um modo muito discreto e sensível com o qual ele trata suas memórias com o Rush e, às vezes, descobrimos histórias sobre a banda em “pinceladas”. Em “Músicas para a viagem – Volume 1”, você consegue perceber essa sutileza também? Teve alguma passagem envolvendo o Rush que te surpreendeu, ou que te aproximou ainda mais da banda?

CANDICE SOLDATELLI

Só vou dizer uma coisa: aguardem o Volume 2. Vai ser um deleite no que diz respeito ao caminho que levou Neil Peart para o Rush logo no primeiro capítulo chamado de “Refrão 3”. No Volume 1, a construção da narrativa é basicamente relacionada à ponte entre o que o Neil criança/adolescente gostava de fazer, de ler e de ouvir e o adulto Neil pegando a estrada com o carro dos seus sonhos ouvindo as músicas de que ele gosta no presente. Mesmo sem falar tanto da banda no Volume 1, dá para ver claramente que tipo de influências construíram a base para Neil Peart se tornar uma lenda do rock – ele cita todos os grandes bateristas que o inspiraram, de Gene Krupa a Keith Moon. Mas será no Volume 2 que as pontas todas se juntam para entender como ele chegou ao Rush e o que entrar na banda como o “new guy” significava de verdade para ele. Não vou dar spoilers hahaha. 

8. PORTAL RUSH BRASIL

Candi, agradeço a entrevista, demorou 5 anos desde a última e não vou me perdoar se demorar tanto tempo para fazer outra entrevista contigo. Quero agradecer também a Bruna Bengozi que criou as perguntas junto comigo, muitíssimo obrigado.

Para fechar, a música que dá o pavimento lírico à obra “Música para Viagem” é “Workin Them Angels” que é uma metáfora para “dar trabalho para os anjos que lhe cercam”. Eu acredito que após esse momento de pandemia passar, a gente vai dar mais valor a esses momentos de aventura de que o Neil tanto fala, desfrutar mais da vida e dar trabalho para “nossos anjos”. Obrigado e beijo grande.

CANDICE SOLDATELLI

Eu é que agradeço a oportunidade de divulgar a obra literária de Neil Peart. E mais uma dica sobre o volume 2: para quem gostou de O ciclista mascarado, há um capítulo inteiro sobre outra aventura de bicicleta na África que é sensacional. Um abraço a todos e até breve.